Personagem ou Enredo: O Dilema Criativo do Roteirista
O que é mais importante na hora de escrever um roteiro cinematográfico?
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Na edição de hoje:
a batalha histórica entre enredo e personagem
enredo e personagens são inseparáveis no drama
rompendo a lógica aristotélica
qual história queremos contar e como
Tempo de leitura: 6 minutos.
O embate entre enredo e personagem possui uma longa história, que começa na Poética de Aristóteles, atravessa toda a história da literatura, da escrita para o teatro até invadir o roteiro cinematográfico.
Tanto o dramaturgo alemão Johann Christoph Gottsched, no século XVIII, quanto Bertolt Brecht, dois séculos depois, concordavam com Aristóteles sobre a primazia do plot. Outro fiel escudeiro do filósofo grego foi o professor e roteirista Irwin R. Blacker. Em seu manual The Elements of Screenwriting (1986), Blacker confessa que se apoia fortemente na Poética e admite que a “alma do drama é o enredo”.
A tradição aristotélica levanta o problema da coexistência entre personagem e enredo, e defende a exteriorização das personagens através de suas ações, ou seja, é a trama que vai revelar o caráter do protagonista (plot reveals character), sendo, portanto, o elemento determinante na criação do drama.
Do pré-romantismo ao cinema de autor
A ruptura do classicismo e da subordinação ao modelo francês, que defendiam o rigor das composições das obras, caracterizado por esse paradigma normativo e influenciado pela tradição aristotélica, vai aparecer graças à ajuda dos seguidores de Shakespeare, Lenz e Goethe, no movimento pré-romântico Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), entre 1760 a 1780.
Antes mesmo dos pré-românticos, dentre os principais críticos e teóricos na segunda metade do século XVIII, destaca-se Lessing. No livro Dramaturgia de Hamburgo (1769), o autor polemiza contra o classicismo francês e afirma que a personagem é mais importante na hora da criação quando aplicada à comédia.
O roteirista Scott Winfield Sublett, em Screenwriting for Neurotics (2014) concorda:
"A comédia, em particular, se beneficia ao começar com o personagem. A comédia frequentemente surge do confronto entre um personagem rigidamente definido e um contexto - o peixe fora d'água”.
Entretanto, Sublett não acredita numa separação entre enredo e personagem, porque ambos estão organicamente interconectados. O roteirista pode começar a pensar a história tanto por um, quanto pelo outro e precisa estar sempre atento aos problemas associados à constante interdependência estrutural das duas categorias.
A questão sobre quem prevalece – enredo ou personagem (ou vice-versa) — deve ser considerada variável ao longo da história da dramaturgia. Mas lembre-se: não há dramaturgia sem a relação entre esses dois elementos.
“A personagem é o elemento incontornável de qualquer história”.1
O cinema moderno de autor, herdado da nouvelle vague e do pós-neorrealismo italiano no final da década de 1950, selou a experimentação narrativa, ignorando a unidade de tempo e ação aristotélica — fundamentais na antiga necessidade do encadeamento de ações e do efeito de causalidade e continuidade na narrativa clássica.
Em The Art of Dramatic Writing (publicado pela primeira vez em 1942 com o titulo How to Write a Play), Lajos Egri afirma que Aristóteles estava errado em relação às regras sobre personagens. Segundo o autor, as situações são sempre inerentes ao caráter (character), e mesmo quando um dramaturgo ou roteirista arma sua história a partir do enredo, no momento em que as personagens entram em cena, as ações precisam ser repensadas.
A força desmedida do caráter ou a falha de um traço (misbehaviour) da personagem ganham precedência e criam novos conflitos, assim o enredo precisa ser imediatamente reformulado para poder fazer sentido. Segundo Egri, o drama é sempre uma character-driven story .
Mesmo autores que pregam por uma estrutura rígida (não se constrói um enredo sólido sem uma estrutura rigorosa) como o archplot de McKee ou o paradigma dos três atos de Syd Field, reconhecem a importância da personagem na trama:
“O personagem é o fundamento essencial de seu roteiro. É o coração, alma e sistema nervoso de sua história. Antes de colocar uma palavra no papel, você tem que conhecer o seu personagem”.2
Uma ação invoca, inevitavelmente a presença de um sujeito. Da mesma forma, o conceito de um sujeito — a personagem — também implica a noção de uma ação, seja ela ativa, passiva, externa ou interna.
Ação vs. Stasis
Vale ressaltar que uma boa história não necessariamente resulta em um bom filme ou num romance extraordinário. Há diversos exemplos, tanto no cinema quanto na literatura, de narrativas sem reviravoltas, incidentes agitados, ou mistérios a serem decifrados.
“Não é do romance que você duvida, é o personagem que não convence”.3
Last Days (2005) de Gus Van Sant valoriza a stasis — momento onde nada de relevante se passa para a narrativa. O que interessa no filme é o comportamento da personagem (mesmo conhecendo o final trágico) e as micro-ações que revelam paulatinamente os últimos dias de Kurt Cobain.
A duração média dos planos — ASL ( Average Shot Length) — no filme de Van Sant é de 46.5 segundos. Compare isso com blockbusters de ação, como por exemplo, The Bourne Ultimatum (2007), e vamos encontrar planos com menos de 2 segundos. Filmes de ação, detetive, mistérios ou crimes são essencialmente filmes nos quais o enredo e a lógica aristotélica aparecem em primeiro plano.
Qual história contar? E como?
Não há uma resposta definitiva sobre enredo e personagem. Diferentes autores reagem de variadas formas. Alguns escritores são diplomatas em suas respostas e sugerem que tanto as personagens como o enredo são determinantes na criação de um drama e não é desejável privilegiar nenhum deles.
“O que é decisivo no Dom Quixote? A natureza sonhadora e delirante da personagem, ou as aventuras em que, por ser quem é, se envolve? O que é decisivo em Madame Bovary? O facto de Emma não aceitar viver sem um grande amor, ou a sequência de episódios amorosos que, por essa razão, procura e instiga? O que é decisivo em Anna Karenina? A sua obsessão por Vronsky, com quem não pode casar se o marido lhe não conceder o divórcio, ou os episódios onde a alta sociedade russa a demoniza pelo escândalo intolerável que a sua “loucura” representa?”.4
Como contadores de histórias, num mundo saturado de narrativas, a questão central na qual precisamos refletir é sempre a mesma: que histórias queremos contar? E como as contaremos? O professor João Maria Mendes coloca quatro categorias para nos ajudar a formular respostas e encontrar um caminho:
Forma: queremos contar uma história linear que ainda obedece a ordem começo-meio-fim?
Conteúdo: estamos interessados em contar fábulas ou parábolas que produzam um efeito moral?
Autoria: há interesse em adaptar obras de autores consagrados para outro medium?
Destinatário: a quem desejamos contar essas histórias? Um público vasto e jovem interessado no mainstream ou críticos e cinéfilos apaixonados pelo cinema independente?
Talvez devêssemos começar por aí, antes de pensarmos em enredo ou personagem.
There’s nothing wrong with beginning with stock elements. The trick is to transcend them.5
Cada roteirista trabalha de forma única. Há os que gostam de começar por situações e outros que escrevem a partir de uma figura com características intrigantes. Não há certo ou errado na hora de criar.
Parte do nosso ofício consiste em identificar o tipo de projeto que estamos pensando, entender o seu objetivo e procurar a forma mais eficiente de usar essa relação entre enredo e personagem para garantir uma narrativa envolvente.
Fade out --
F.S.
Parent-Altier, O Argumento Cinematográfico
Field, Screenplay. The Foundations of Screenwriting
Assis Brasil, Escrever ficção: Um manual de criação literária
Mendes, Sentidos figurados: cinema, imagem, simulacro, narrativa
Suber, The Power of Film