O Uso da Bissociação no Cinema
Como a combinação de ideias inusitadas pode ajudar na escrita do roteiro.
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Na edição de hoje:
aprendendo com os irmãos Joey e Andy Siara
introdução do conceito de bissociação na escrita
os filmes “populares e memoráveis” do professor Howard Suber
breve análise prática exemplificando o uso da bissociação
Tempo de leitura: 5 minutos.
Na minha pós-graduação em 2020, tive aulas com o incrível roteirista Joey Siara, irmão do igualmente talentoso Andy Siara, criador da série The Resort (2022) e do premiado Palm Springs (2020). No mês passado, Andy foi convidado para o podcast do Arc Studio (vale a pena escutar a conversa), onde compartilhou um pouco sobre a sua jornada e o processo de criação do filme que impulsionou sua carreira.
A dupla Siara não só possui afinidade com o drama, mas também exibe grande talento musical. Em 2005, os irmãos fundaram a banda The Henry Clay People e alcançaram sucesso na cena alternativa dos Estados Unidos, percorrendo o país em turnês ao lado de bandas como Against Me! e Silversun Pickups.
Após o fim da carreira punk, os irmãos decidiram concentrar-se na escrita de roteiros. O podcast com Andy me fez recordar as generosas aulas ministradas por seu irmão, sempre muito estimulantes e repletas de exemplos práticos.
Joey frequentemente aclamava seu mentor Howard Suber, professor emérito da UCLA. Ao longo de seus 50 anos como docente da universidade, Suber tornou-se extremamente popular entre os estudantes de cinema, com suas aulas sendo disputadas por alunos de diversas disciplinas, incluindo roteiristas, diretores, produtores e animadores.
Depois de publicar The Power of Film em 2006 (que agora virou minissérie), Suber popularizou muito dos conceitos abordados em seus cursos da universidade, os quais continuam a ressoar entre estudantes e cineastas. O livro foca exclusivamente no que o renomado professor americano chama de “filmes populares memoráveis”. Segundo o autor, filmes como The Godfather (1972), Annie Hall (1977) e Apocalypse Now (1979), entre outros, alcançaram popularidade devido ao [1] sucesso inicial no lançamento e [2] à sua permanência no “topo”, por pelos menos uma década. E esses filmes são memoráveis porque uma vasta quantidade de pessoas ainda se recorda deles.
Joey laureava o livro, sempre trazendo referências durante as aulas. Então, é claro, fui logo atrás de uma cópia. No entanto, o aspecto mais marcante da pós-graduação foi a introdução ao conceito de “bissociação” (bisociation) por Joey, compartilhado com a turma no final do trimestre.
O jornalista e autor húngaro Arthur Koestler cunhou o termo bisociation em seu livro The Act of Creation (1964), numa tentativa de descrever uma das chaves do processo criativo. O conceito pode ser definido como o encontro de duas ideias em planos diferentes de pensamento, muitas vezes estranhas entre si, que antes não haviam sido conectadas ou combinadas, resultando em algo inédito, totalmente único. Trata-se daquele salto repentino da força criativa e imagética capaz de conectar ideias distintas para produzir descobertas, inovações e invenções.
“Quando ninguém nunca pensou em juntar dois elementos ou, melhor ainda, quando a sabedoria comum diz que não se deve misturar dois elementos diferentes, o potencial criativo da bissociação pode produzir uma obra nova, original e memorável”. — Howard Suber
Em The Power of Film, o autor traz o conceito para o cinema e aponta a diferença entre a bissociação e a dialética marxista de opostos. Enquanto a primeira associa elementos diferentes para gerar algo novo, a segunda sublinha as contradições entre dois opostos. Suber defende que a justaposição de elementos inesperados, incompatíveis e, muitas vezes, artificiais é o que torna a bissociação atraente, especialmente em filmes de ficção científica e terror.
Vejamos dois exemplos: Alien (1979) e The Terminator (1984). Optei por simplificar os roteiros originais para ilustrar melhor o conceito, principalmente no texto de James Cameron, onde há muitas indicações de câmera e detalhes que não vemos na tela. Caso o leitor tenha interesse, poderá encontrar os roteiros em suas versões originais aqui e aqui.
Observe como essas cenas brincam com dois elementos — conteúdo versus contexto — para criar algo original e, além de visualmente poderosas, proporcionam a introdução dos personagens que carregam os títulos dos filmes.
A sequência do batismo em The Godfather também ilustra como contexto e conteúdo se fundem, produzindo um efeito brutal.
No entanto, não precisamos aplicar a técnica criativa da bissociação apenas em nível de cena ou sequência. Ela também pode ser uma ferramenta incrivelmente útil para explorar a ideia central do filme ou série. Joey garante que a maioria das nossas séries favoritas trabalham dessa forma. Ele trouxe exemplos populares para discutirmos em aula, como Barry (2018), Killing Eve (2018), The Handmaid’s Tale (2017) e The Sopranos (1999). Repare como a bissociação provoca os conflito centrais (story engines) de cada uma:
BARRY: um assassino de aluguel apático e desiludido, mas ao encontrar uma comunidade de aspirantes a atores, Barry se sente atraído por essa nova vida.
KILLING EVE: uma agente burocrata de serviços da segurança nacional que leva uma vida sem grandes aventuras, mas se torna obcecada pela assassina que foi encarregada de investigar.
THE HANDMAID'S TALE: uma mulher progressista do século 21, mas de repente é forçada a uma vida de escravidão nas mãos de um patriarcado totalitário.
THE SOPRANOS: um homem de família que luta contra uma crise de identidade, ansiedade e depressão, mas também é um chefe destemido da máfia em ascensão.
Podemos ainda expandir a técnica na construção de personagens e até mesmo nos diálogos. Nas comédias românticas, por exemplo, os protagonistas quase nunca possuem características em comum e parecem habitar universos totalmente distintos. No entanto, é exatamente essa “combinação” de diferenças que muitas vezes leva à formação dos casais românticos no filme. E quem não se lembra de algumas das falas mais memoráveis do cinema? Elas também fazem uso da bissociação!
The Godfather: “Leave the gun, take the cannoli."
Dr. Strangelove: “Gentlemen, you can't fight in here. This is the War Room."
The Terminator: “Hasta la vista, baby.”
Apocalypse Now: “I love the smell of napalm in the morning”.
Pense nos seus personagens favoritos, nas cenas inesquecíveis ou nos diálogos engraçados; eles nunca se apresentam como sendo uma coisa só, pois utilizam o potencial criativo da bissociação, sempre misturando o que não se “deve” misturar. De acordo com Suber, é nessa técnica criativa que podemos produzir trabalhos originais, populares e memoráveis.
E se prestarmos atenção, vamos começar a notar bissociação em tudo… Um professor de roteiro que também é punk? Daria um bom filme, não é mesmo?
Fade out --
F.S.