O Roteiro Cinematográfico: Desafios de uma Definição
Uma breve lista com a opinião de ilustres nomes e pensadores do cinema.
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Na edição de hoje:
roteiro como blueprint e objeto de controvérsia
uma breve história: screen play, scenario, screenplay
forma ou função: ambiguidade sobre a verdadeira natureza do roteiro
gurus, cineastas e teóricos dão a sua opinião
Tempo de leitura: 7 minutos.
Blueprint, Palimpsesto ou Texto Sagrado?
Muito se fala do roteiro como um blueprint. Como as plantas que arquitetos ou engenheiros traçam para seus projetos — elas definem dimensões, determinam espaços e criam ambientes. Após a conclusão do projeto, a planta ganha vida na realidade física com a colaboração de outros, sempre seguindo a visão do seu criador. Assim como o projeto do arquiteto para o prédio não é o prédio final e real, o roteiro de um filme nunca é o filme que se vê na tela.
A analogia, no entanto, tem suas limitações. Enquanto o termo blueprint evoca uma ideia de algo fixo e preciso, o roteiro cinematográfico é um texto sempre em fluidez. Desde o desenvolvimento da ideia até a filmagem, o texto passa por revisões e ajustes contínuos, refletindo o processo colaborativo envolvido na produção de um filme.
O professor e crítico da revista cinética Pablo Gonçalo propõe o termo “palimpsesto” para descrever esse pré-texto sempre em mutação e, de certa forma, provisório — um conjunto de textos sobrepostos uns aos outros.
O que exatamente constitui um roteiro? — Osip Brik
O roteiro talvez seja o elemento mais controverso do cinema. É um objeto que precisa ser criado para depois ser lido, anotado, dissecado e descartado.
Podemos ainda considerar o roteiro, entre as diferentes formas de escrita, como um documento destinado a um grupo exclusivo de leitores. Cada um desses leitores possui uma agenda particular.
Os atores estão interessados em seus próprios personagens enquanto produtores focam nos números e no potencial comercial. O diretor de fotografia busca as melhores imagens nas entrelinhas e o diretor do filme prefere não ler.
“Vocês ainda não viram cinema nenhum, o que viram foram mais de cem anos de textos ilustrados e, se tiverem tido sorte, talvez um pouco de teatro gravado” — Peter Greenaway
Enquanto alguns cineastas elevam o texto fílmico ao status de uma bíblia sagrada, outros acreditam que o roteiro não passa de um exercício burocrático. Há também realizadores mais extremistas que buscam emancipação da tirania do texto e clamam pelo sumiço dos roteiristas.
”Shoot all scriptwriters, and we may yet have a rebirth of American cinema" — Jonas Mekas
Em sua historiografia do roteiro A History of The Screenplay (2013), Steven Price aponta que a palavra “screenplay” não aparece como um substantivo composto até a década de 1930. Antes disso, desde pelo menos 1916, a expressão utilizada era "screen play", referindo-se ao filme em si e não ao roteiro. Naquela época, o roteiro era chamado de "scenario".
Price faz uma reflexão sobre como o roteiro é um texto modular que ao longo da história do cinema acumulou diferentes termos e significados, como por exemplo: photoplay, synopsis, scenario, continuity, treatment, e shooting script. Para Price, esses estágios representam uma gama de opções que os escritores têm à disposição, podendo escolher usá-las em combinações diversas na criação de suas histórias.
Talvez o único consenso que podemos chegar sobre o roteiro seja quanto à sua forma. Ela surpreendentemente se manteve consistente ao longo das décadas.
Um roteiro "padrão" de longa-metragem geralmente tem cerca de 120 páginas (embora esse número possa variar conforme o gênero do filme). Uma página — segundo convenção derivada das demandas da indústria — equivale a aproximadamente um minuto de tempo de tela. A conhecida fonte Courier 12, criada em 1955, ganhou popularidade nos roteiros por ser uma fonte tipográfica monoespaçada, ou seja, as letras e caracteres ocupam o mesmo espaço horizontal na página, contribuindo para a equação “uma página = um minuto”.
Além disso, os cabeçalhos, descrições de ações e diálogos são elementos que marcam presença constante na evolução do roteiro. Marc Norman, em seu livro What Happens Next: A History of American Screenwriting (2007), sublinha essa consistência histórica sobre a forma do roteiro:
“No final da década de 1910, o roteiro havia adquirido seu formato definitivo, um texto dividido em cenas individuais, numeradas, sendo que cada nova cena começava com um cabeçalho capitalizado que geralmente incluía os nomes dos personagens e uma indicação se a ação passava de dia ou de noite, seguido por um parágrafo, […] de descrição da cena. O diálogo então descia pelo centro da página, interrompido por mais descrições quando necessário.”
Considerando a observação de Norman, podemos concluir que alguns dos elementos presentes nos roteiros atuais também podem ser identificados em roteiros da era do cinema mudo, e ambos desempenham funções semelhantes.
Entretanto, a questão se o roteiro deve ser definido principalmente por sua forma ou por sua função está no cerne da dificuldade em defini-lo.
Roteiro: a opinião dos gurus, cineastas e teóricos
Saindo um pouco do academicismo e da linha cronológica do roteiro, qual a opinião dos profissionais de cinema sobre este objeto tão enigmático?
Compilei uma breve lista com 15 opiniões divergentes sobre o que é o roteiro e a dividi em três categorias: os gurus dos manuais, os cineastas (sejam diretores, roteiristas ou produtores) e os teóricos.
Essa lista, longe de ser exaustiva, tem como objetivo instigar nossa própria reflexão sobre a arte e o ofício de ser roteirista e o que verdadeiramente permeia esse estilo tão singular de escrita.
Então… o roteiro é…
Para os gurus dos manuais:
“Cinco coisas: as linhas da história, os personagens,
a ideia subjacente, as imagens e o diálogo.”
(Linda Seger)
“[…] permitir que um personagem simpático supere uma série de obstáculos cada vez mais difíceis, aparentemente insuperáveis, e alcance um desejo atraente.”
(Michael Hauge)
“Um roteiro é uma progressão de ações que um herói
realiza para alcançar algum objetivo.”
(Scott Winfield Sublett)
“Um roteiro, […] é uma história contada com imagens.
E como um substantivo: isto é, um roteiro trata de uma pessoa,
ou pessoas, num lugar, ou lugares, vivendo a sua "coisa.”
(Syd Field)
“Roteiristas e escritores de prosa criam a mesma densidade
de mundo, personagem e história, mas como as páginas dos roteiros
têm muito espaço em branco, somos induzidos a pensar que um roteiro
é mais rápido e fácil do que um romance.”
(Robert McKee)
Para os cineastas:
“Um convite para colaborar em uma obra de arte.
Roteiros contêm 3 coisas; tema, personagem, estrutura. Isso é tudo.”
(Paul Schrader)
“Nos melhores dias, acredito que o roteiro é uma peça de literatura, certamente peculiar. […] Nos piores dias, vejo o roteiro como uma lista de afazeres glorificada.”
(Kleber Mendonça Filho)
"[…] um bom roteiro é aquele que dá origem a um bom filme. Uma vez que o filme existe, o roteiro deixa de existir. Ele é provavelmente o componente menos visível da obra finalizada. É a primeira encarnação de um filme e parece ser um todo autônomo. Mas está fadado a passar por uma metamorfose, a desaparecer, a se fundir em outra forma, a forma final."
(Jean-Claude Carrière)
"Um roteiro nunca é domínio exclusivo do roteirista ou do diretor,
e somente quando ambos são verdadeiros colaboradores é que o filme
poderá funcionar tão bem quanto puder."
(Alexander Mackendrick)
“Roteiros são estrutura.”
(William Goldman)
Para os teóricos:
“uma obra inacabada, cuja completude só tera lugar no ato fílmico.”
(Dominique Parent-Altier)
“[…] os roteiros são um duplo engano:
eles simulam ser textos, quando de fato são programas de imagens.”
(Vilém Flusser)
“O roteiro é o registro de uma ideia para uma obra audiovisual, escrito em uma forma altamente estilizada. É limitado pelas regras de sua forma na página e está sujeito a normas e convenções da indústria.”
(Ian Macdonald)
“Um roteiro é uma imitação simbólica, filmada, encenada, imediata
e sequencial de uma ação com um começo, meio e fim […], possuindo um significado inerente, gerado pela ação de personagens tentando e,
em última instância, resolvendo conflitos […], cujo resultado incorpora
a visão do roteirista, cujo propósito é agradar, divertir, iluminar, dominar
e resolver impulsos inatos em cada membro da audiência”
(Lance Lee)
“Um roteiro é o esboço de um filme, expresso em palavras. [...] Mas isso de forma alguma faz do roteiro uma obra literária e muito menos autônoma.”
(Osip Brik)
E aí? Concorda com alguma dessas definições e opiniões?
Podemos sempre concordar em discordar, mas lembre-se, o roteiro cinematográfico possui uma formatação específica, um padrão “industrial” que combina a linguagem textual — ritmo, tom, atmosfera — com as funções de uma cadeia produtiva audiovisual. Embora haja espaço para exploração, com certa flexibilidade e variações, negligenciar tanto a formatação quanto a linguagem é fazer um trabalho malfeito e amador.
Como profissionais da escrita, nosso papel é sempre deixar o roteiro com aquela cara de roteiro, ou seja, formatá-lo adequadamente, escrevendo sempre de forma concisa e clara, sem nunca deixar de encantar os leitores e instigar a imaginação.
Nas palavras de Ricardo Tiezzi, um dos meus grandes professores nessa jornada:
“Roteiro não é literatura, mas também não é relatório”.
O que permanece curioso quando tentamos responder à questão sobre o que é um roteiro cinematográfico é o fato de que, embora a forma do roteiro seja altamente especializada (e padronizada) e sua função seja clara, há um alto grau de ambiguidade quanto à sua verdadeira natureza.
Fade out --
F.S.