O Poderoso Motor de "Os Sopranos"
Como David Chase organizou o piloto de uma das séries mais influentes da história da televisão.
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Na edição de hoje:
vamos abordar a estrutura do piloto de “Os Sopranos”;
A importância dos beats na construção da narrativa e progressão do enredo;
A genialidade de David Chase ao dividir o piloto em três segmentos;
Compreender como construir um poderoso “motor de histórias”;
Tempo de leitura: 6 minutos.
Hoje, vamos falar sobre estrutura.
Revisitei o piloto de “Os Sopranos” (1999) e gostaria de compartilhar algumas reflexões sobre a forma como David Chase organizou o episódio.
Acredito que todos estejam familiarizados com a série, portanto, não entrarei em detalhes sobre a trama ou os conflitos centrais apresentados no piloto. E se você ainda não assistiu a essa série histórica, pare tudo e comece agora. Vai lá. Só volte aqui quando terminar as seis temporadas. Não precisa me agradecer depois.
“Os Sopranos” é considerada uma obra-prima, pioneira naquilo que Brett Martin, autor de Difficult Men: Behind the Scenes of a Creative Revolution: from The Sopranos and The Wire to Mad Men and Breaking Bad, denomina como “a terceira era de ouro da televisão”. A série influenciou uma nova geração de showrunners e estabeleceu um modelo de “produto” que continua relevante até os dias atuais.
Mas como o piloto foi escrito?
Para responder a essa pergunta, precisamos decupar e examinar os BEATS presentes no roteiro. Você pode fazer o download do piloto através deste link.
Definindo os beats
Para aqueles que não estão familiarizados com o termo, beats podem ser considerados as menores unidade de ação — uma microdose narrativa — que podem se desdobrar em uma ou várias cenas. Um beat representa uma ação essencial para a progressão do enredo. No entanto, é importante não confundir beat com a “pausa na ação”, termo frequentemente utilizado em roteiros.
Segundo Robert McKee, o famoso guru dos manuais, ele defini beat como:
Um beat é uma troca de comportamento na ação/reação. Beat após beat, essas mudanças de comportamento moldam a reviravolta de uma cena” .
Linda Venis, diretora do departamento de Artes da UCLA, considera os beats como pontos de virada (plot points), ou seja, eventos específicos que impulsionam a ação e a direção da narrativa. Para ilustrar como identificar os beats, ela descreve uma pequena história:
“No seu dia de folga e sofrendo de ressaca, John acidentalmente derruba o leite. Sua esposa diz que era o último pacote quando sua filha vomita em cima dele. John vai até a loja para comprar mais leite, mas esquece de pegar o seu revólver. Assaltantes armados entram para roubar o local e John, desarmado, usa sua inteligência para impedi-los”.
Onde estão os beats nessa história? Quais os eventos que mudam a ação/direção da história?
O bebê vomitando em John é um evento, mas não muda nada. A ressaca de John, tampouco. Você não precisa desses detalhes para contar essa mesma história. No entanto, sem John derrubar o leite e assaltantes entrarem para roubar a loja, você não tem história. São dois beats essenciais.
Você pode ter mais de um beat numa única cena, ou diversos beats que podem ser distribuídos em várias cenas. A imagem abaixo representa a organização dos beats em um episódio de “Breaking Bad”. Cada cartão descreve um beat, que pode corresponder a uma cena ou mais, como mencionado anteriormente.
Esse método de organização ajuda a visualizar a estrutura do episódio e a desenvolver o enredo de forma coerente. Por meio dessa organização das ideias, os roteiristas podem planejar e estruturar a narrativa, garantindo que os beats sejam devidamente distribuídos para criar tensão, desenvolver os personagens e avançar a trama de forma consistente.
Após estabelecer o panorama geral do episódio, o roteirista prossegue para a escaleta, também conhecida como beatsheet, e posteriormente, para o outline detalhado. Nesse processo, o beat é uma parte essencial da estrutura geral, enquanto o outline aprofunda cada cena individualmente.
No exemplo a seguir, apresento dois beats que se transformaram em duas cenas no outline. Esse projeto foi um piloto que escrevi sobre o GEF, uma unidade especial de fiscalização do Ibama.
O beat é então expandido quando o roteirista desenvolve o outline, que é uma versão mais detalhada do roteiro. Nesse estágio, cada cena é descrita de forma mais precisa. É durante o outline que começamos a ter uma percepção mais clara da mise-en-scène, do tom, da dinâmica entre as personagens no espaço cênico e dos conflitos presentes em cada cena. Note que ainda não são inseridos os diálogos nessa fase.
Vale ressaltar que tanto o beatsheet quanto o outline são discutidos e revisados exaustivamente na sala de roteiristas, incorporando comentários de produtores e executivos. Somente após essa intensa fase de revisões e ajustes é que o roteiro final é efetivamente escrito, levando em consideração todas as contribuições discutidas anteriormente.
Estruturando “Os Sopranos”
Agora que compreendemos como funcionam os beats, podemos examinar como David Chase os organizou no piloto de “Os Sopranos”:
15x beats relacionados à vida criminal de Tony
16x beats relacionados à vida familiar de Tony
11x beats com Tony e sua terapeuta, Dra. Melfi
Obviamente, David Chase não estruturou o piloto dessa maneira por acaso. O renomado autor e professor Neil Landau, responsável pelo programa de pós-graduação MFA Writing for Television da UCLA, tem uma perspectiva interessante sobre pilotos de séries:
“O piloto estabelece o protótipo do que será o ponto-chave do show em desenvolvimento”.
O ponto-chave de “Os Sopranos” está no cruzamento entre a vida criminal de Tony e sua vida familiar. A divisão quase igualitária do roteiro em dois "segmentos" (crime e família), feita por David Chase, é significativa. O conflito central da série reside no protagonista tendo que navegar entre essas duas áreas.
Isso proporciona uma infinidade de histórias — story engine — um verdadeiro motor de enredo que contribui para a longevidade da série. Não basta ter um piloto bem escrito. Você precisa de um motor poderoso capaz de gerar quatro, cinco, seis temporadas.
Entretanto, na minha opinião, o aspecto mais interessante é como a Dra. Melfi e as sessões de terapia de Tony Soprano (James Gandolfni) foram introduzidas como um dispositivo de enquadramento inteligente, ampliando a força do piloto e do motor da série. Além de lutar constantemente com a polícia e as famílias rivais, Tony está em guerra consigo mesmo.
Evidentemente, Chase, um roteirista veterano, fez todas essas escolhas de forma deliberada. As sessões de terapia abarcam o terceiro segmento do piloto, com 11 beats, criando assim outro ponto-chave para a série, possibilitando uma nova gama de histórias e conflitos. Genial, não é mesmo?
Um fato curioso: quando Chase e seus agentes apresentaram o piloto para a CBS, o presidente e executivo Leslie Moonves adorou o roteiro, porém não estava convencido com as sessões de terapia de Tony Soprano. Aliás, “Os Sopranos” foi rejeitado não apenas pela CBS, mas também pela ABC e NBC, até finalmente chegar à HBO.
Para concluir, David Chase desenvolve uma estrutura entrelaçada com três segmentos — três áreas distintas da vida de Tony Soprano que estão constantemente em conflito: família, crime e terapia. Essa combinação forma o motor da série, possibilitando a produção de infinitas narrativas. Assim, Chase não apenas criou um poderoso story engine, mas também uma das grandes séries de todos os tempos.
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F.S