O Memorando de David Mamet
Para os escritores da série "The Unit". E para todos nós, roteiristas.
Olá, meu nome é Fernando e essa é a newsletter do Guia do Roteirista. Uma vez por semana (ou quase isso), compartilho reflexões e dicas sobre o trabalho do escritor-roteirista. Se você já é assinante, agradeço imenso pelo apoio. Caso queira se inscrever, basta clicar no link abaixo.
Na edição de hoje:
Como o memorando de Mamet pode nos ajudar a escrever melhor;
A importância do drama em todas as cenas;
O enfraquecimento da dramaturgia pelo uso excessivo de diálogos e informações expositivas;
As perguntas que devemos fazer quando estamos escrevendo um roteiro.
Tempo de leitura: 6 minutos.
Onde devemos colocar o conflito num roteiro? Na criação dos personagens? Nos espaços? Em sequências? Nos diálogos? No primeiro ou no terceiro ato?
A resposta é fácil: em tudo.
Drama é conflito. Um roteiro sem conflito é um roteiro sem drama, ou seja, não é interessante para nós nem para o espectador.
David Mamet, dramaturgo, diretor e roteirista de filmes como The Postman Always Rings Twice (1981), The Verdict (1982), The Untouchables (1987), Hoffa (1992), Hannibal (2001), compartilha preciosas dicas sobre o ofício. Mamet também foi criador, produtor e roteirista da série The Unit (2006) da CBS.
A série é baseada no livro de Eric L. Haney, Inside Delta Force: The Story of America's Elite Counterterrorist Unit. Como um dos fundadores da Delta Force, Eric fez parte de uma unidade ultrassecreta do Exército Americano contra-terrorista.
Após quatro temporadas e 69 episódios, The Unit foi cancelada. Gostar ou não do gênero ação, thriller ou guerra é irrelevante para nós. O importante é aprender a fazer um trabalho bem feito.
Descontente com a pressão dos executivos em ditar como ele (e os escritores da sala) deveria compor os roteiros, Mamet escreveu um memorando à equipe criativa da série.
A tradução é minha e tomei a liberdade de destacar certos pontos. O memorando original pode ser encontrado nesse link.
Fade out --
F.S
O Memorando de David Mamet para a Equipe de Roteiristas do The Unit
Aos escritores do The Unit,
Saudações.
À medida que aprendemos a escrever esta série, ficou claro que temos um problema recorrente.
O problema é o seguinte: diferenciar entre drama e não-drama. Deixe-me explicar agora.
Todos na criação estão gritando para deixarmos a série mais óbvia. Parece que a nossa tarefa é enfiar uma porrada de informações num curtíssimo espaço de tempo.
Nossos amigos, os pinguins, pensam que somos empregados para comunicar informações — e assim, às vezes, nos parece também.
Mas atenção: o espectador não vai sintonizar para assistir à informações. Você não faria, eu não faria. Ninguém faria ou fará. O espectador só vai sintonizar e permanecer sintonizado para assistir o drama.
Pergunta: o que é drama?
O drama, mais uma vez, é a busca do herói para superar os obstáculos que o impedem de alcançar um objetivo específico e urgente.
Então: nós, os roteiristas, devemos nos fazer essas três perguntas em todas as cenas:
1) Quem quer o quê?
2) O que acontece se ele/ela não conseguir?
3) Por que agora?
As respostas para estas perguntas são como papel de tornassol. Aplique-as e suas respostas revelarão se a cena é dramática ou não.
Se a cena não for escrita dramaticamente, ela não será dramática quando for interpretada.
Não há pó de fada mágico que transforme uma cena chata, inútil, redundante ou meramente expositiva depois de sair da sua máquina de escrever. Vocês, os roteiristas, são responsáveis por garantir que cada cena seja dramática.
Isso significa todas as "pequenas" cenas expositivas de duas pessoas falando sobre uma terceira. Essa bobagem (e todos nós temos tendência de escrever isso na primeira versão) é menos que inútil, deveria ser proibida por Deus de ser filmada.
Se a cena te entedia quando você a lê, tenha certeza de que também entediará os atores, e em seguida, o espectador, e todos estaremos de volta na miséria.
Alguém precisa tornar a cena dramática. Não é o trabalho dos atores (o trabalho deles é serem verdadeiros). Não é o trabalho do diretor. O trabalho dele ou dela é filmar de forma objetiva e lembrar os atores de falarem rápido. É o seu trabalho.
Toda cena deve ser dramática. Isso significa: o personagem principal tem alguma carência e precisa de alguma coisa, uma necessidade simples, direta e urgente que o impulsiona a aparecer em cena.
Esta necessidade é o motivo pelo qual eles aparecem. É disso que se trata a cena. A tentativa deles de satisfazer essa necessidade resultará, no final da cena, ao fracasso — é assim que a cena termina. Esse fracasso, então, vai impulsionar a próxima cena.
Todas essas tentativas, juntas, constituirão a trama ao longo do episódio.
Qualquer cena que não avance a trama e que não possa se sustentar sozinha (ou seja, dramaticamente funcione por si só, por seus próprios méritos) é supérflua ou mal escrita.
Sim, mas sim, mas sim, mas, você diz: e a necessidade de escrever toda essa “exposição“?
E eu respondo, “se vira”. Qualquer idiota com um terninho azul pode ser (e é) ensinado a dizer "deixe tudo mais óbvio” e “eu quero saber mais sobre ele".
Quando você deixar tão óbvio que mesmo esse pinguim de traje azul estiver feliz, tanto você quanto ele ou ela estarão sem emprego.
O trabalho do dramaturgo é fazer o espectador se perguntar o que vai acontecer a seguir. Não é para explicar o que acabou de acontecer, ou sugerir para eles o que vai acontecer a seguir.
Qualquer idiota, como mencionado, pode escrever: "mas, Jim, se não assassinarmos o primeiro ministro na próxima cena, toda a europa será engolida por chamas”.
Não estamos sendo pagos para perceber se o espectador precisa dessa informação para entender a próxima cena, mas para descobrir como escrever a cena diante de nós de maneira que o espectador se interesse pelo que vai acontecer a seguir.
Sim, mas sim, mas sim, mas, você insiste.
E eu respondo: se vira.
Como se encontra o equilíbrio entre reter e revelar informações?
Essa é a tarefa essencial do dramaturgo.
E a habilidade de fazer isso é o que separa você das espécies inferiores em seus ternos azuis.
Se vira.
Comece sempre com esta regra inviolável: a cena tem que ser dramática. Deve começar porque o herói tem um problema, e deve terminar com o herói frustrado, ou com algum aprendizado de que existem outras maneiras.
Examine as suas loglines. Qualquer logline que diga “Bob e Sue discutem…” não está descrevendo uma cena dramática.
Observe que as nossas escaletas são, geralmente, espetaculares. O drama flui entre a escaleta e a primeira versão do roteiro.
Pense como um cineasta e não como um funcionário, porque, na verdade, você é quem está fazendo o filme. O que você escrever eles vão filmar.
Aqui estão os sinais de perigo. Sempre que dois personagens estiverem falando sobre um terceiro, a cena é uma merda.
Sempre que um personagem falar para o outro "como você sabe", ou seja, contando algo que você, o escritor, precisa que o espectador saiba, essa cena é uma merda.
Não escreva uma cena inútil. Escreva uma cena intensa de três, quatro, sete minutos que avance a história, e logo você poderá comprar uma casa em Bel Air e contratar alguém para morar lá por você.
Lembre-se, você está escrevendo para um meio visual. A maioria dos textos para televisão, inclusive os nossos, soa como rádio.
A câmera pode explicar as coisas para você. Deixa-a fazer isso. O que os personagens estão fazendo literalmente? O que eles estão lendo, assistindo na televisão, vendo?
Se você fingir que os personagens não podem falar e escrever um filme mudo, estará escrevendo um grande drama.
Se você se privar das muletas narrativas, exposição e até mesmo dos diálogos, será forjado a trabalhar num novo meio – o de contar histórias com imagens (também conhecido como roteiro).
Isso é uma habilidade nova. Ninguém a possui naturalmente. Mas vocês podem treinar para desenvolvê-la, só precisam começar.
Eu encerro com um pensamento: olhe para cena e pergunte a você mesmo: “ela é dramática? É essencial? Avança o enredo? Responda com sinceridade.
Se a resposta for "não", reescreva ou jogue fora. Se você tiver alguma dúvida, me ligue.
Com amor, Dave Mamet
Santa Monica, 19 de Outubro de 2005
(Não é sua responsabilidade saber as respostas, mas é sua e minha responsabilidade saber fazer as perguntas certas, repetidamente até que se torne automático. Eu acredito que elas estão listadas acima.)